Biscoitos queimados
Século 21, uma fase de tecnologias, avanços e guerras.
Parece promissor, sim? A inteligência artificial vem tomando espaço no dia a dia de jovens e jovens adultos numa velocidade impressionante, enquanto profissionais artísticos, majoritariamente, vem tendo seus empregos simplesmente inutilizados.
A escrita de livros por inteligência artificial já é uma ação que ocorre e prolifera no meio literário, mas não tanto quanto a banalização completa de artistas visuais dentro do âmbito digital. Ferramentas como o Chat GPT que transformam imagens e prompts no que lhe é pedido e rotula como otimização da tecnologia: um avanço humanitário.
Quando criança, costumava desenhar. Tenho apego a memórias e guardo, hoje, centenas de desenhos e cadernos que transbordam rabiscos de uma mente criativa. Num computador roxo de quase um quarto do tamamho usual de qualquer outro, fui feita a pessoa mais feliz do mundo quando ganhei uma pequena mesa digitalizadora para desenhar. Fazem três anos que não a tiro do armário, por motivos que tento me convencer que são válidos. Instituições federais tomam tempo, afinal, e a esperança de seguir carreira no meio artístico, se antes já era pequena, hoje em dia não existe.
Avanço humanitário então, retornamos. Num mundo onde avançamos com tecnologias que regridem nossas formações para com aquilo que ansiamos, queimamos as pilhas de desenhos guardados de uma criança esperançosa em prol do desenvolvimento social.
No entanto, a mudança vem, o que não se nega, mas com ela mudamos junto. Construimos, com as cinzas de sonhos soterrados pela brusca chuva de realidade, algo que chamamos de lar. A alma se alimenta daquilo que temos a oferecer, se banqueteia no que já fomos e no que planejamos ser. O que somos todos se não uma padaria interna que produz sob demanda daquilo que consumimos?
Consumimos pouca cultura, retorna então o farelo de pão, a migalha de bolo que alimentaremos nossa alma. Tudo aquilo que consumimos em demasia ou de modo diminuto, devolvemos na forma de comida, nutrindo nós mesmos ou destruindo nossa própria mente.
A falta do pensar próprio, com a artificialidade dos cérebros digitais que pensam por nós, começa a epidemia de vitrines abandonadas. Mentes vazias e famintas de algo que não podemos dar- queremos comida. Precisamos de algo substancial. Com as tentativas, que em sua maioria, atingem sucesso, do mundo moderno para esvaziar nossas mentes e atear fogo a nossas memorias, ainda podemos persistir.
Que queimem meus desenhos antigos, com eles farei biscoitos e disso minha alma se encherá daquilo que em muitos falta.
Deixe que incorporemos nossa originalidade moldade a base do pó das antigas estruturas moldadas pela sociedade.
Esse texto é inspirado no Projeto de Cremação, de John Baldessari - 1970.
O artista, cuja carreira inicial se deu com a pintura convencional da sua época, após adotar sua assinatura no âmbito da fotografia e arte contemporânea, queimou suas pinturas feitas anteriormente, moldando as cinzas em “biscoitos” dispostos numa jarra, em conjunto com a “receita” dos cookies.